sexta-feira, 21 de agosto de 2015

O que se chama de pensamento universal,  visto à luz, é o pensamento de duas ou três pessoas; e seríamos convencidos disso se pudéssemos ver como realmente surgem esses pensamentos. Descobriríamos então que existem duas ou três pessoas que a princípio os aceitaram, promoveram ou defenderam; e que foram tão boas a ponto de se confiar que os testaram muito bem. Então, convencidas de antemão de que estas tinham capacidade, algumas outras pessoas também aceitaram a opinião. Estas, por sua vez, receberam a confiança de muitos outros, cuja preguiça lhes sugeriu que era melhor acreditar de uma vez do que ter o trabalho de testar a questão por si mesmas. Assim, dia após dia, cresce o número de tais preguiçosos e seguidores crédulos; então a opinião tem um bom número de defensores, e os seguidores atribuem isso ao fato de que tal opinião só poderia ser obtida pela convicção de seus argumentos. Os que ainda tivessem dúvidas eram compelidos a validar o que era admitido universalmente, para não passarem por cabeças-duras que resistem às opiniões validadas pela maioria, ou  por pessoas rudes que querem ser mais espertas que o resto do mundo. Agora, aderir, torna-se uma obrigação. A partir deste ponto, os poucos que são capazes de julgar se calam. E quem se aventura a falar é completamente incapaz de ter ideia ou julgamento próprios, simplesmente ecoam a opinião alheia; e mesmo assim a defendem com grande zelo e ignorância. Pois o que elas odeiam nas pessoas que pensam de outra maneira não são as ideias que elas professam, mas a pressuposição de que querem julgar as coisas por si mesmas, o que elas mesmas nunca fazem e disso são conscientes. Em resumo, poucos conseguem pensar, mas todos querem ter opiniões - o que resta a não ser pegá-las prontas dos outros em vez de formar as suas próprias? Como é isso o que acontece, qual o valor da voz de centenas de milhões de pessoas? Tanto quanto um fato histórico presente em centenas de relatos que comprovadamente plagiaram uns aos outros, a opinião pode ser rastreada até uma única fonte. (Segundo Bayle).

domingo, 6 de julho de 2014

Versos Íntimos

Vês? Ninguém assistiu ao formidável
Enterro da tua última quimera.
Somente a ingratidão- esta pantera-
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável 
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro.
A mão que afaga é a mesma que apedreja. 

Se alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga, 
Escarra essa boca que te beija!

Augusto dos Anjos 1978.

domingo, 17 de novembro de 2013

Qualquer um reconhece os doentes dessa doença. Fundas olheiras delatam que jamais dormimos, e padecemos febres devastadoras e sentimos uma irresistível necessidade de dizer estupidezes. Não consigo dormir. Tenho uma mulher atravessada entre as minhas pálpebras. Se pudesse, diria a ela que fosse embora; mas tenho uma mulher atravessada na minha garganta. Eu adormeço às margens dessa mulher: eu adormeço às margens de um abismo. Arranque-me, senhora, as roupas e as dúvidas: dispa-me, dispa-me. 

- Eduardo Galeano, O livro dos abraços.

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

"Eu via todo o ambiente no qual, em espírito, se envolvia; roupas, lençóis, móveis: eu lhe dava força, uma outra figura. Via tudo o que tocava, como se tivesse querido criar cada coisa por ele mesmo. Quando me parecia com o espírito inerte, eu o seguia em ações estranhas e complicadas, longe, boas ou más: estava segura de nunca entrar em seu mundo. Ao lado de seu querido corpo adormecido, quantas horas noturnas de vigília, me perguntando por que ele queria tanto se evadir da realidade. Nenhum homem teve igual propósito. Reconhecia - sem temer por ele - que podia constituir um sério perigo em sociedade. - Possui talvez segredos para mudar a vida? Não, não faz mais que os buscar, me replicava. Enfim sua caridade é encantada, e dela sou a prisioneira. Nenhuma outra alma teria tanta força - força de desespero! - para suportá-la - para ser protegida e amada por ele...
Eu estava em sua alma como num palácio que se esvaziou para não ver uma pessoa tão pouco nobre como vós, eis tudo. Ai! Eu dependia muito dele. Mas o que ele queria com a minha existência tenra e frouxa? Ele não me tornava melhor, se não me fazia morrer!"


Arthur Rimbaud, Uma Temporada no Inferno.

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Uma oração

Minha boca pronunciou e pronunciará, milhares de vezes e nos dois idiomas que me são íntimos, o pai-nosso, mas só em parte o entendo. Hoje de manhã, dia primeiro de julho de 1969, quero tentar uma oração que seja pessoal, não herdada. Sei que se trata de uma tarefa que exige uma sinceridade mais que humana. É evidente, em primeiro lugar, que me está vedado pedir. Pedir que não anoiteçam meus olhos seria loucura; sei de milhares de pessoas que vêem e que não são particularmente felizes, justas ou sábias. O processo do tempo é uma trama de efeitos e causas, de sorte que pedir qualquer mercê, por ínfima que seja, é pedir que se rompa um elo dessa trama de ferro, é pedir que já se tenha rompido. Ninguém merece tal milagre. Não posso suplicar que meus erros me sejam perdoados; o perdão é um ato alheio e só eu posso salvar-me. O perdão purifica o ofendido, não o ofensor, a quem quase não afeta. A liberdade de meu arbítrio é talvez ilusória, mas posso dar ou sonhar que dou. Posso dar a coragem, que não tenho; posso dar a esperança, que não está em mim; posso ensinar a vontade de aprender o que pouco sei ou entrevejo. Quero ser lembrado menos como poeta que como amigo; que alguém repita uma cadência de Dunbar ou de Frost ou do homem que viu à meia-noite a árvore que sangra, a Cruz, e pense que pela primeira vez a ouviu de meus lábios. O restante não me importa; espero que o esquecimento não demore. Desconhecemos os desígnios do universo, mas sabemos que raciocinar com lucidez e agir com justiça é ajudar esses desígnios, que não nos serão revelados.

Quero morrer completamente; quero morrer com este companheiro, meu corpo.

Jorge Luis Borges

quarta-feira, 10 de julho de 2013

A gente é lançado no mundo como uma pequena e suja múmia; as estradas estão lisas se sangue e ninguém sabe por que deve ser assim. Cada um percorre seu próprio caminho e, embora a terra esteja cheia de boas coisas, não há tempo para colher os frutos; a procissão amontoa-se em direção à saída e há tal pânico lá, tal luta para fugir, que os fracos e desamparados são pisados na lama e seus gritos não são ouvidos.

Trópico de Câncer ( Henry Miller).
De vez em quando, é verdade, penso em Mona, não como uma pessoa em uma aura definida de tempo e espaço, mas separadamente, destacada, como se ela tivesse crescido numa grande forma semelhante a nuvem que apagasse o passado. Eu não podia deixar-me pensar muito tempo a seu respeito; se o fizesse teria saltado da ponte. É estranho. Reconciliara-me tanto com esta vida sem ela e, ainda assim, pensar nela apenas um minuto era o suficiente para perfurar o osso e a medula de meu contentamento e jogar-me de volta na agonizante sarjeta de meu miserável passado.
(...)
Juntamo-nos numa dança de morte, e tão rapidamente fui sugado para o vórtice que, quando voltei à superfície, não pude reconhecer o mundo. Quando me vi solto, a música havia cessado; o carnaval terminara e eu estava liquidado.

Trópico de Câncer (Henry Miller).

domingo, 17 de março de 2013



Tudo destruído por briguinhas à toa. Implicâncias por nada. Ficar puto por tudo e por nada. Dia a dia, ano a ano, ralando. Em vez de se ajudar um ao outro, a gente se cortava todos os dias, por uma coisa e outra. Uma aporrinhação infindável. Torna-se uma competição barata. E, uma vez que a gente entra, vira um hábito. Parece que não vai conseguir sair. A gente quase não quer sair. E de repente sai. Completamente.


 Charles Bukowski.

terça-feira, 12 de março de 2013

O mundo que venci deu-me amor

O mundo que venci deu-me um amor,
Um troféu perigoso, este cavalo
Carregado de infantes couraçados.
O mundo que venci deu-me um amor
Alado galoupando em céus irados,
Por cima de qualquer muro de credo, 
Por cima de qualquer fosso de sexo.
O mundo que venci deu-me um amor
Amor feito de insulto e pranto e riso,
Amor que força as portas dos infernos,
Amor que galga o cume ao paraíso.
Amor que dorme e treme. Que desperta
E torna contra mim, e me devora
E me rumina em cantos de vitória.



Mário Faustino.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Juliete nunca mais

(...) Enquanto a gente praticava aquele jogo de desinteresses, cada um de um lado do balcão, seu olhar profundo foi emperrando meu raciocínio lógico e moral, não sei, era como se eu fosse um filhote de beija-flor que se chocou contra a fachada de um prédio no primeiro voo. Você, daquele seu jeito, me catou do chão, cuidou da minha asa, me deu néctar direto no bico com uma seringa, me engaiolou de porta aberta, e eu fui ficando porque eu quis. Mesmo quando eu estava recuperada e sadia, não tive vontade de te contar, ou então você me devolveria para a natureza. Por isso eu me fazia tanto de louca. Se eu me comportasse normalmente, como as outras, você perderia o interesse no enigma. Você vai me achar uma bruxa manipuladora agora, mas tudo que eu fazia era pra te dar o que falar com seus amigos no bar. Entrando e saindo fora assim da sua vida você pensaria em mim dias a fio. Eu queria ser o exemplo de garota que você teria em mente ao dizer que todas as mulheres são doidas. Pelo menos assim, quando eu resolvia voltar, você ainda não havia me esquecido.

Gabito Nunes.